Revista Globo Rural

PECUÁRIA

PECUARISTAS DO PANTANAL ADOTAM SISTEMA CONSERVACIONISTA EM QUE A VEGETAÇÃO NATIVA GARANTE UMA DIETA DIVERSA E FUNCIONAL AO GADO

por CLEYTON VILARINO

PANTANAL

Na região existem 145 espécies de gramíneas, 70 leguminosas e 60 forrageiras não convencionais

COM MAIS DE 60 ANOS DE PANTANAL, o pecuarista Leonardo Leite de Barros admite que faz totalmente o contrário do que os manuais de alta produtividade preconizam. Ele mantém uma baixa taxa de lotação, de 0,5 unidade animal por hectare, sem realizar rotação de pastagens, e dispensou os protocolos de inseminação artificial em tempo fixo (IATF), contando apenas com a monta natural para a produção de bezerros, atividade foco da Fazenda Santa Clara, localizada na região de Nhecolândia, próximo a Corumbá, em Mato Grosso do Sul.

“Eu quero a minha vaca o mais livre possível, o mais tranquila possível. Quanto menos eu mexer com ela, melhor ela fica, porque, apesar de a gente ter uma relação boa, somos bichos diferentes”, explica o produtor ao descrever o sistema que implantou como um teste, mas que já vai para o seu terceiro ano, com uma taxa de desmama de 75%, bem acima da média do Estado, que fica entre 60% e 65%.

“Não tenho alta lotação porque eu acho que para ter uma alta lotação você tem de antropizar, tem de empurrar, o homem tem de fazer modificações no ecossistema que eu não vejo o porquê. Acho que ganho mais dinheiro com pouco gado, mas com alta produtividade, do que fazendo essa antropização para aumentar minha capacidade de unidade animal por hectare”, observa Leonardo.

Quarta geração de pantaneiros, ele se orgulha de não ter precisado desmatar os mais de 12 mil hectares de vegetação nativa da fazenda adquirida há 20 anos com o irmão. Uma riqueza que ele reconhece e valoriza.

“Não tirei uma árvore dessa fazenda e não vou tirar. Eventualmente, a gente tira plantas invasoras. Entra, limpa e deixa de novo. Agora, essa fazenda tem aptidão para isso, tem uma característica e uma vantagem de ter pastagens nativas em quantidade muito maior. Se não fosse isso, eu não teria 6 mil reses, teria 4 mil”, observa o produtor.

O uso de pastagens nativas é um dos pilares da estratégia da Fazenda Santa Clara, que inclui a posterior terminação desses animais em outra propriedade, certificada para produção de carne orgânica.

Parte do transporte dos animais, de 800 a 1,2 mil cabeças, é feita pelos peões em comitivas que percorrem 160 quilômetros durante seis dias, até o ponto de embarque em caminhões boiadeiros rumo à fase final de engorda.

“Eu faço exatamente a tradição da pecuária pantaneira, só que tenho alta produtividade. Tenho uma genética de gado inglês, que dá maciez à carne. Eu tenho um manejo que pode parecer que ele é solto, mas não é. Visa principalmente o bem-estar animal. Isso quer dizer que quero o animal livre pra ele comer o que ele quiser, a hora que ele quiser.”

Dentre o bufê disponível para o gado pantaneiro estão 145 espécies de gramíneas, 70 leguminosas e 60 forrageiras não convencionais, segundo o levantamento feito por Arnildo Pott, pesquisador aposentado da Embrapa. “É muito importante conhecer esses tipos de pastagens nativas de qualidade e como usá-las de forma sustentável, pois ela está aí e é o principal recurso renovável no caso da pecuária”, explica a pesquisadora da Embrapa Pantanal Sandra Santos. Junto com Pott e outros pesquisadores, Sandra é autora de um guia com dados sobre o teor de nutrientes de 103 espécies de pasto nativo do Pantanal, publicado pela Embrapa Pantanal, e destaca que a presença dessa vegetação garante uma dieta mais diversa e funcional ao gado.

“É igual a uma dieta nossa: você vai comer só arroz? Só um determinado tipo de alimento? Claro que tem aquelas espécies que dominam em maior quantidade, que são as que consideramos espécies-chave para fazer manejo, mas todas as outras enriquecem essa dieta, que se torna mais funcional, além de proporcionar maior saúde ao animal”, observa Sandra ao ressaltar também os ganhos ecossistêmicos da conservação dessa vegetação nativa.

“A Urochloa humidicola, por exemplo, que é a mais usada na região, tem raízes profundas que contribuem com o estoque de carbono no Pantanal. As pastagens nativas também comportam outras espécies animais do bioma, principalmente grandes herbívoros silvestres, além de outras espécies. Sabendo usar dentro de critérios técnicos, quando você considera a riqueza da paisagem, onde colocar e como colocar, ela pode ser usada de maneira integrada”, explica a Sandra.

Em seus estudos, Élen Nalério, pesquisadora em ciência e tecnologia da carne da Embrapa Pecuária Sul, já conseguiu constatar ganhos nutricionais importantes quando comparados os animais alimentados exclusivamente a pasto com aqueles que recebem suplementação.

O experimento, realizado em fazendas de Bagé, Lavras do Sul e Vacaria, todas no Rio Grande do Sul, onde está sediada a unidade da Embrapa, demonstrou que, em geral, os animais terminados a pasto apresentavam um acabamento com teor de gordura intramuscular menor, o que os torna mais magros.

“Quando a gente vai olhar em termos de ácidos graxos, que é o tipo de gordura que se forma na carne, essa

“Não tirei uma árvore dessa fazenda e não vou tirar. Eventualmente a gente tira plantas invasoras”

LEONARDO LEITE DE BARROS,

pantaneiro e pecuarista

relação também é muito boa. A OMS (Organização Mun

dial de Saúde) preconiza que, para o alimento ser considerado saudável, é preciso que haja uma relação de ômega 6 e 3 abaixo de 4:1, e nesses animais de campo nativo essa relação foi de 2,8”, explica Élen.

Localizado na mesma região que Leonardo, o pecuarista Eduardo Cruzetta também tem investido na manutenção da vegetação nativa, sendo 3,35 mil hectares de pastagens e 4,3 mil hectares de formação arbórea – parte delas integrada com pasto plantado em sistema ecológico, com supressão apenas das espécies arbustivas, que representam cerca de 30% da paisagem local. O resultado é um pasto diverso, formado entre árvores, com muita sombra e ciclagem de matéria orgânica no solo.

“Esse conceito já existia, ele tem mais de 30 anos e foi desenvolvido por Jurandir Melado (engenheiro agrônomo e professor aposentado da Universidade Federal do Mato Grosso, a UFMT) para áreas pequenas. Foi feito para ser implantado de forma manual em propriedades que não tinham condições financeiras de fazer desmatamento para formação de pasto e para promover a ocupação de áreas de cerrado sem precisar fazer desmatamento”, conta Cruzetta ao falar das adaptações realizadas para replicar o sistema em maior escala.

“Aqui a gente trouxe uma outra visão e também uma recomendação de consultores que me orientaram que eu fizesse esse sistema com mecanização, dado que trabalhamos com grandes áreas no Pantanal e o sistema manual seria inviável a princípio. Então fizemos essa opção de realizar a mecanização e fomos adaptando para chegar a esse formato”, recorda o produtor, que se prepara para iniciar testes com o uso de drones para realizar o plantio de novas áreas de pasto ecológico.

Apesar do maior custo, da necessidade de mão de obra qualificada e do maior tempo para o seu pleno estabelecimento (três anos, ante seis meses no método convencional), uma vez implementado, o modelo ecológico garante a Cruzetta economia com fertilizantes, maior conforto térmico e bem-estar animal e uma menor degradação do pasto ao longo dos anos.

“Além do solo não ter sofrido o que sofre no sistema convencional, esse perfil de solo é original do cerrado que tinha aqui e que levou milhares de anos para se estabelecer. O perfil de solo não foi alterado, não teve gradeação, e tem esse mundo de árvores aqui fazendo a ciclagem de nutrientes”, conta o produtor ao reforçar os ganhos indiretos gerados pelo uso de técnicas conservacionistas no manejo de sua propriedade.

“É um modelo que talvez vá produzir menos volumoso por hectare ao ano num primeiro momento, mas que tenho certeza de que no ganho final de peso dos animais isso se equilibra ou ganha-se até mais nesse sistema”, conta o pecuarista, que hoje tem conseguido entregar

“É muito importante conhecer esses tipos de pastagens nativas de qualidade e como usá-las de forma sustentável”

SANDRA SANTOS,

pesquisadora da Embrapa Pantanal

novilhas de 2 a 28 meses terminadas 100% a pasto com um peso médio de 14 arrobas.

“Não é um animal superpesado e nem superprecoce, mas também o custo (fixo) é de certa forma menor. Então a gente tem um equilíbrio razoável disso tudo”, completa Cruzetta, que preside a Associação Pantaneira de Pecuária Orgânica e Sustentável (ABPO).

Embora adotem manejos bastante distintos, as fazendas de Eduardo e Leonardo têm pontos importantes em comum. Ambos com certificação para produção de carne orgânica, eles estão em busca de mais um reconhecimento: a identificação geográfica da carne pantaneira. “Se existe terroir, terroir é isso. O terroir vem dessa diversidade de capim e do ambiente pantaneiro, da maciez e da suculência da carne, do cruzamento industrial, da excelência no trato com a carne, que é uma indústria quase artesanal e que a gente tem todo o cuidado com todos o predicados que a gente precisa trazer para cá”, comenta Leonardo.

Capitaneado pela ABPO, o pedido de identificação geográfica deve ser protocolado ainda este ano pela entidade e está na fase de elaboração do dossiê histórico e do caderno de normas técnicas, documento que descreve os métodos de manejo típicos da região e que serão necessários para obter o selo de indicação geográfica uma vez que ele seja criado pelo INPI. Atualmente, mais de 60 produtores associados participam do programa de Carne Orgânica e Sustentável do Pantanal da ABPO.

“O caderno de normas é onde vamos falar qual é o nosso sistema, o que pode ou não ser utilizado e os procedimentos dessa produção. Vamos ter a colaboração de outras instituições nisso, vamos ouvir as Embrapas, a própria secretaria de produção do governo do estado, e vamos ouvir os produtores, principalmente para refletir sobre o jeito de fazer que é realmente o jeito de fazer pantaneiro, mas que também esteja adequado, claro, às exigências que a gente tem hoje e as demandas da sociedade”, explica Cruzetta.

Embora haja perspectiva de que a indicação geográfica valorize a carne pantaneira num mercado cada vez mais apertado como o da arroba bovina, o maior ganho, na avaliação de Leonardo, será a fidelização de clientes preocupados com a origem do que consomem e a visibilidade da cultura pantaneira.

“A carne de qualquer animal tem seu gosto e suas qualidades sensoriais ligados ao que o animal come e ao seu manejo, a sua genética. Na nutrição você tem essa quantidade de diversidade de pastagem e, do ponto de vista do manejo, a gente está nesse ambiente que você está vendo aqui, que não sei nem como descrever um troço desse. Se tem um lugar onde o animal pode exercer a sua liberdade, é isso aqui, senão eu não sei mais o que falar sobre liberdade do animal”, completa o pantaneiro.

“Tenho certeza de que no ganho final de peso dos animais isso se equilibra ou ganhase até mais nesse sistema”

EDUARDO CRUZETTA,

pecuarista e presidente da ABPO

SUMÁRIO

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