Revista Globo Rural

Ela conquistou a ciência e o campo

Por WILHAN SANTIN

PESQUISADORA VENCEU DIVERSOS PRECONCEITOS E PROVOU QUE OS MICRORGANISMOS INOCULADOS NA SOJA RESULTAM EM UM DIFERENCIAL PRODUTIVO E SUSTENTÁVEL PARA O BRASIL, GERAM ECONOMIA DE DIVISAS NA IMPORTAÇÃO, ALÉM DE REDUZIREM O IMPACTO AMBIENTAL, AO SUBSTITUIR OS FERTILIZANTES QUÍMICOS

De tão extenso, o currículo da cientista Mariangela Hungria não dá para ser resumido. Somente títulos de pós-doutorados ela tem três, sendo dois de universidades dos Estados Unidos e um de instituição espanhola. Membro da Academia Brasileira de Ciências, ela figura em diversos rankings que elencam os profissionais mais influentes do planeta e já foi reconhecida com premiações relevantes. Em dezembro, comemorou 40 anos como pesquisadora da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), ostentando o brilho nos olhos daqueles que ainda estão no começo de carreira. As pesquisas nas quais ela trabalhou permitem ao Brasil economizar em torno de US$ 40 bilhões por ano, utilizando bactérias para substituir o custoso processo industrial de produção de adubos nitrogenados. É a chamada fixação biológica do nitrogênio.

GLOBO RURAL_ A senhora poderia explicar como algumas bactérias nos permitem economizar tanto?

MARIANGELA HUNGRIA _

O nitrogênio é a base da vida. É um nutriente que a planta requer em grande quantidade. Daí, temos um paradoxo, pois o ar que respiramos tem 80% de nitrogênio gasoso. Mas esse N2 do ar tem uma tripla ligação que é uma das mais fortes da natureza. Para fazer o fertilizante quí

mico, são necessárias altíssimas pressões e temperaturas para quebrar essas ligações, o que exige energia não renovável. A síntese de fertilizantes químicos, em média, requer seis barris de petróleo por tonelada de amônia fixada. Tudo isso é caro e está relacionado à emissão de gases de efeito estufa. Mas existem algumas bactérias – como a Bradyrhizobium – que são capazes de quebrar essa tripla ligação e

transformar o N2 em amônia, a mesma substância que a gente tem no fertilizante químico.

GR_ Então, a natureza faz o que o homem gastaria muito para fazer no processo industrial?

MH_

Sim. Temos vários tipos de associações dessas bactérias com as plantas, sendo as mais específicas as leguminosas, como a soja e o feijão. As

bactérias conseguem, em condições adequadas, fornecer todo o nitrogênio que as plantas precisam. No caso da soja, por ter alto teor de proteína, a planta precisa de muito nitrogênio. Graças às pesquisas que desenvolvemos no Brasil, temos bactérias que conseguem fornecer 100% desse nutriente. Somos líderes mundiais nesse quesito. Se considerarmos que o fertilizante nitrogenado é cotado em dólar e custa mais de US$ 2 por quilo, chegamos a esta quantia de US$ 40 bilhões de economia.

GR_ E quanto custam as bactérias?

MH_ Elas podem ser encontradas concentradas nos produtos que chamamos de inoculantes. Com 100 mililitros, é possível tratar uma área de 1 hectare de soja. Isso custa R$ 10 por hectare e permite economizarmos mais de US$ 500 por hectare.

GR_ Por que a senhora decidiu ser estudiosa de bactérias?

MH_ Desde criança, sempre gostei de microrganismos. Na faculdade, eu já sabia que era isso o que queria. Mas, naquela época, havia preconceito no meio acadêmico sobre essa área do conhecimento. Disseram que, por eu ser inteligente, deveria estudar fertilizantes químicos, porque os microrganismos não teriam futuro. Eu, porém, segui o meu coração. Com as bactérias, estamos deixando de emitir mais de 200 milhões de toneladas de CO equi

2 valente, que seriam necessárias para produzir o fertilizante químico.

GR_ Como está a adesão dos agricultores brasileiros à fixação biológica do nitrogênio?

MH_ Na soja, praticamente 100%. Graças à consciência e à qualificação de pesquisa que sempre tivemos no Brasil, essas bactérias que foram colocadas em nosso solo são muito eficientes. Nenhum agricultor conseguirá produzir em uma área que nunca recebeu plantio de soja sem utilizar as bactérias. Elas ficam no solo e sempre vão garantir produção. Se colocar todos os anos, a um custo muito baixo, irá gerar um aumento médio de produção de 8%. Isso representa praticamente o lucro do produtor. E 80% da área de soja do Brasil, hoje, usa os inoculantes. Nenhum país tem essa taxa de adoção de produto microbiano na soja.

GR_ E para outras culturas?

MH_ Também existem muitas vantagens, mas ainda são pouco adotadas pelos produtores. No feijão, por exemplo, poderíamos quadruplicar a média nacional, mas a fixação biológica é pouco adotada na cultura, porque ainda acontece de os grandes acessarem mais rapidamente as tecnologias do que os pequenos. Com o desmantelamento da extensão rural no país, cada vez mais o pequeno agricultor está desassistido. Existe uma série de tecnologias que poderiam melhorar a agricultora familiar e a produção dos pequenos agricultores, mas não chegam até eles.

GR_ Como a senhora vê a insegurança alimentar em um país que registra números expressivos na produção de grãos?

MH_ Esse é um ponto que eu não me conformo. Faço parte da Academia Brasileira de Ciências, e estamos formando um grupo para discutir isso. A própria Embrapa tem estudos que mostram que atualmente alimentamos aproximadamente 1 bilhão de pessoas no mundo. Eu evito citar esse dado, pois acho vergonhoso dizer que alimentamos tantas pessoas no mundo quando temos 33 milhões de pessoas em insegurança alimentar em nosso país. Acredito que o papel do agro não seja apenas produzir os alimentos. Com a cadeia de logística, de distribuição e conhecimentos que detemos, temos tudo para mudar esse cenário.

GR_ Em algumas ocasiões, a senhora citou o sonho de recuperar pastagens degradadas. Como está esse projeto?

MH_ Lançamos um pacote tecnológico e já tem um inoculante comercial no mercado com resultados fantásticos para pastagens, de incremento médio de 22% de produção de biomassa e aumento qualitativo dessa biomassa, com 12% de nitrogênio, 11% de potássio e 30% de fósforo. Com isso, o gado tem mais alimento e de melhor qualidade, emitindo menos metano. É muito triste viajar pelo Brasil e ver áreas de pastagens degradadas. Antes de encerrar a minha carreira, gostaria de ajudar a recuperar essas áreas, pois assim não precisaremos

“É vergonhoso dizer que alimentamos tantas pessoas no mundo quando temos 33 milhões de pessoas em

insegurança alimentar no país”

derrubar nem sequer uma árvore para aumentar muito a nossa área de plantio de grãos. Atualmente, a área de pastagens corresponde a 2,7 vezes a área de grãos no país. Entre 60% a 70% dessas pastagens estão em algum estágio de degradação.

GR_ E o bioestimulante Pastomax, que venceu um prêmio internacional, quanto tempo vocês trabalharam nessa pesquisa e no desenvolvimento do produto?

MH_ Tivemos uma primeira versão, que evoluiu até chegar ao Pastomax, que associa dois microrganismos com propriedades multifuncionais, Azospirillum brasilense e Pseudomonas fluorescens. Ao todo, foram 11 anos de trabalho, que, na verdade, são o resultado de uma vida de pesquisas. Na última etapa, foram conduzidos ensaios por quatro safras, em duas condições de solo e clima distintos, com inoculação via sementes e, também, em aplicação foliar em pastagens já estabelecidas. Para nós, que trabalhamos com bioinsumos, a meta é sempre a sustentabilidade, a agricultura regenerativa. Poder desenvolver pesquisas que contribuam para a regeneração dessas áreas e lançar um produto altamente eficiente é muito gratificante.

GR_ Quais são os principais desafios nesta era de agricultura 4.0?

MH_ Vemos tantas coisas inovadoras, vislumbrando um grande futuro, mas ainda temos uma contradição quando olhamos para a realidade do campo. Na Embrapa Soja, no “Sul Maravilha”, não temos internet nem “1G” nas áreas de campo. E o pessoal está falando em “5G”. Então, a gente tem tecnologias campeãs de sustentabilidade, como fixação de nitrogênio, plantio direto, integração lavoura-pecuária e, por outro lado, o desmatamento. Estamos em uma época de muitos contrastes. A polarização da política está também na agricultura e na pesquisa. Precisamos de uma visão aberta para a conciliação.

GR_ Quais são os seus próximos passos e desafios?

MH_ Quando engravidei, foi fundamental ter o apoio da minha avó. A Carolina, minha primeira filha, nasceu em 1977. A Marcela veio em 1978, com necessidades especiais. Eu sofri muito preconceito, e toda mulher que tem um filho com deficiência sempre pensa o que será do filho quando ela for embora. Trabalhei muito para que a minha filha tenha suporte financeiro e emocional quando eu me for. Minha filha mais velha é jornalista, está firme na carreira, e as duas são muito unidas. Agora quero doar o que recebi. Há dois anos ganhei um prêmio financeiro e, recentemente, recebi mais um, da Bunge. Estou criando uma associação para incentivar mulheres na qual estou colocando esse dinheiro. Quero criar premiações em agricultura e microbiologia, para mulheres empreendedoras. Tenho certeza de que cada real que investirmos se multiplicará em milhões em retorno para a agricultura brasileira

C∣ÊNCIA | ENTREVISTA

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2023-01-31T08:00:00.0000000Z

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