Revista Globo Rural

ENTREVISTA

SANDRA UWERA, DA FAIRTRADE INTERNATIONAL, DIZ QUE CONSUMIDORES SÃO ESSENCIAIS NO COMBATE À EXPLORAÇÃO DE TRABALHADORES

Por ELIANE SILVA

Nascida em Ruanda e criada no Quênia, Sandra Uwera assumiu há um ano a presidência da Fairtrade International, uma associação sem fins lucrativos que reúne 22 organizações dedicadas à adoção de práticas de comércio justo em diferentes países. Segundo ela, acelerar as certificações da produção “justa” é uma forma de disseminar as boas práticas no campo e, ao mesmo tempo, aumentar o valor que os agricultores recebem pela produção. O "bônus" tem viabilizado investimentos e melhorado a vida de muitas famílias na zona rural. Em passagem recente pelo Brasil, ela conversou com a GLOBO RURAL.

GLOBO RURAL_ O que é, afinal, o comércio justo, ao qual a Fairtrade International se dedica?

SANDRA UWERA_ É um negócio que beneficia todos os envolvidos. O comércio justo existe quando cidadãos, empresas, parceiros comerciais, governos e produtores têm plena consciência da necessidade de se pagar o valor correto por um produto, e não um que prejudique os trabalhadores.

GR_ O comércio justo é um conceito que diz respeito apenas aos pequenos produtores ou ele vale também para os de grande porte?

UWERA_ Nosso foco são os pequenos produtores, porque eles não são tão organizados quanto os maiores. Nesse trabalho, oferecemos ferramentas que permitam a eles se organizar e alcançar nichos de mercado que vão pagar mais por seus produtos. Em algumas culturas específicas, como flores e bananas, já certificamos grandes fazendas, mas, nesses casos, nosso apoio não foi aos donos das operações, e sim aos trabalhadores dessas propriedades.

GR_ No debate internacional sobre comércio justo, o foco parece ser sempre a exportação. O mercado interno não entra nessa equação?

UWERA_ O modelo tradicional, vigente há mais de 20 anos, é o de exportação do Hemisfério Sul para o Norte, especialmente o mercado europeu. Temos contratos com parceiros comerciais na Alemanha, Suíça e outros que compram os produtos e têm uma cadeia organizada para vender em toda a Europa. Mas estamos trabalhando para fomentar as vendas com certificação da Fairtrade também no mercado interno. Hoje, essas vendas não passam de 3%. O produtor negocia com o mercado interno, mas não usa o selo. Falta consciência de que isso agrega valor e, além disso, também faltam compradores dispostos a pagar o preço justo.

GR_ Na América Latina, o Brasil tem

muito menos produtores certificados do que países como Peru, Colômbia e México. Por quê?

UWERA_ Hoje, temos 975 operadores certificados na América Latina, entre fazendas, cooperativas e associações. O Brasil tem apenas 54, o que é pouco para o tamanho e o protagonismo de seu agronegócio. Em 2021, o país vendeu 240 mil sacas de café com selo de comércio justo, e o mercado global foi de 3,1 milhões. Ou seja, o Brasil não mostra sua força. Isso ocorre porque o país entrou mais tarde na plataforma da Fairtrade, que começou na América Latina com o café da Colômbia e do Peru. Faltam mais produtores orgânicos no Brasil, já que esse mercado de café com certificação de comércio justo tem nicho orgânico.

GR_ O café é o produto que mais tem certificações da Fairtrade. A organização pretende crescer também em outros produtos?

UWERA_ O café é um produto muito

competitivo, uma commodity com volatilidade de preços nos mercados internacional e doméstico. Estamos tentando criar uma cultura de consumo mais consciente. O Brasil exporta laranja, pimenta e tem outras commodities, mas o volume com certificação de comércio justo é pequeno. Hoje eu visitei uma fazenda de laranja na região de Bebedouro (membro da Cooperativa dos Produtores Rurais da Agricultura Familiar). Os produtores já embarcam laranja certificada para a Alemanha e outros países, mas querem entrar em outros mercados.

GR_ A prioridade então é aumentar a venda dos produtos que já estão na plataforma?

UWERA_ Sim, o interesse hoje é manter o mercado que nós temos e aumentar o volume de vendas. Desde 2014, os produtores receberam 940 milhões de euros como prêmio pela venda com o selo de comércio justo. No ano passado, foram 150 milhões de euros. Na ampliação das vendas certificadas, um grande desafio é a atual situação econômica do mundo. Os compradores internacionais estão mais preocupados com o custo. Há pouco foco em questões sociais e prioridade ao que for mais barato. Queremos trazer mais produtores para a certificação, mas precisamos mudar a consciência dos compradores.

GR_ O Brasil já foi um grande exportador de cacau, mas hoje as multinacionais fabricantes de chocolate que atuam no país importam, todo ano, cerca de 50 mil toneladas de amêndoas da África, especialmente da Costa do Marfim, onde há muitas denúncias sobre uso de trabalho escravo ou infantil nas plantações. Como a Fairtrade International atua nesse segmento?

UWERA_ Não sei dizer se o trabalho escravo e infantil é uma realidade geral na Costa do Marfim. O fato é que lá se trabalha em condições de muita pobreza. Nós visitamos esses locais para tentar melhorar a vida dos produtores e trabalhadores. Implantamos programas sociais para lidar com crianças no trabalho, com proteção social e sistemas de ajustes para lidar com essas questões. O trabalho infantil ou análogo à escravidão existe em todos os lugares do mundo. Nós trabalhamos para tentar reverter, reduzir e melhorar as condições de vida das pessoas. Temos também comitês de gênero, inclusive agendas para ajudar as mulheres a identificar e denunciar seus agressores, e comitês para negociar salários mínimos. Falta muito trabalho, mas acredito que estamos na direção certa. GR_ Recentemente, houve uma série de operações de resgate de trabalhadores em regime análogo à escravidão em plantações brasileiras de uva, arroz, cana e até café orgânico. Existe uma tendência global de aumento desses casos?

UWERA_ O comércio justo é uma responsabilidade compartilhada. Um produto muito barato carrega, intrinsicamente, uma suspeita de que ele foi fruto de exploração indevida da força de trabalho. Os consumidores continuam procurando produtos baratos sem a consciência sobre as condições de produção. É um círculo vicioso. Por mais que tentemos reduzir esse problema, estamos operando em uma escala muito pequena. São 1,9 milhão de produtores com selo de comércio justo, mas o número de produtores no mundo é bem maior. Se a responsabilidade não for compartilhada com todos os elos da cadeia, o peso vai cair sobre o produtor.

GR_ A Fairtrade International não atua com produtores dos Estados Unidos ou Canadá. Como esses países participam do comércio justo?

UWERA_ Nos Estados Unidos e no Canadá, temos organizações nacionais de comércio justo (Fairtrade America e Fairtrade Canada) que trabalham em estreita colaboração com parceiros comerciais para garantir que os produtos certificados cheguem cada vez mais aos consumidores desses mercados. Segundo uma pesquisa sobre consumo feita em 2021, quase três quartos dos consumidores americanos se lembram de ter visto um rótulo ético, um número que foi 6 pontos percentuais maior do que o de anos anteriores. Sabemos que há uma forte demanda por comércio justo, e estamos muito dedicados a fazer a ponte entre os consumidores dos EUA e do Canadá e os produtores.

GR_ Quanto os produtores e cooperativas pagam para obter a certificação

“O trabalho infantil ou análogo à escravidão existe em todos os lugares do mundo. Trabalhamos para tentar melhorar as condições de vida

das pessoas”

da Fairtrade? E quanto tempo leva para se conseguir o selo?

UWERA_ A Fairtrade International exige que seus certificadores mantenham informações gerais transparentes sobre os custos desse processo. As taxas de certificação são estruturadas para permitir a participação e capacitação de todos os parceiros comerciais. Os custos dependem de vários fatores, mas geralmente do tamanho da organização e do papel que ela desempenha no sistema de comércio justo. Uma estimativa individual das taxas de certificação pode ser feita com a calculadora de custos no site da Flocert, nossa certificadora. Como as organizações de produtores não são fazendas individuais, as taxas não precisam ser pagas por um único pequeno agricultor. Em vez disso, eles são pagos pela organização de produtores como um todo, que é composta de um número maior de pequenas fazendas ou é administrada como uma plantação. Em última análise, a certificação da Fairtrade deve fazer sentido comercial para os produtores, que precisam considerar a demanda do mercado por seus produtos e seu acesso a esses mercados antes de obterem o selo. Para os produtores que conseguem vender bem nos termos do comércio justo, os benefícios econômicos podem ser bem maiores do que os custos da certificação.

GR_ Há um incentivo para o produtor converter sua produção para o sistema de cultivo orgânico?

UWERA_ As certificações orgânica e de comércio justo têm abordagens distintas entre si, mas complementares. A Fairtrade não exige que os agricultores sejam certificados como orgânicos, mas promove a agricultura orgânica e apoia a transição para a produção orgânica. Nós também estabelecemos preços mínimos mais altos para produtos orgânicos.

GR_ A senhora assumiu a direção da Fairtrade International em abril do ano passado. Como foi trocar a posição de principal executiva em uma grande empresa para trabalhar em uma organização dedicada a pequenos produtores rurais da África, América Latina e Ásia?

UWERA_ No emprego anterior, eu trabalhava com mais de 34 tipos de negócios, que pertencem a empresários de pequeno, médio e grande porte e também a multinacionais. Muitos desses empresários querem produtos e serviços que os pequenos agricultores podem oferecer, independentemente das condições de vida ou de trabalho desses agricultores. Quando eu assumi a Fairtrade International, eu pude ver com mais clareza o aspecto de desenvolvimento humano que o trabalho oferece e que está por trás dos interesses comerciais. São esses produtores que mantêm os negócios vivos.

SUMÁRIO

pt-br

2023-04-29T07:00:00.0000000Z

2023-04-29T07:00:00.0000000Z

https://revistagloborural.pressreader.com/article/281509345508756

Infoglobo Conumicacao e Participacoes S.A.