Revista Globo Rural

DEZ ANOS ATRÁS, A GRANDE BUSCA dos cafeicultores era aprimorar os cuidados no pós-colheita, para garantir que a qualidade do grão não se perdesse ao ser extraído das lavouras. Agora, é a vez da fermentação, um processo químico em que o açúcar presente na polpa do fruto é quebrado por microrganismos (nativos do próprio café ou inoculados). O método resulta em compostos que realçam – e até modificam – o perfil sensorial (aroma e sabor) da bebida, que também pode apresentar notas inusitadas, como flores, frutas e vinhos.

Tal complexidade de sabores caracteriza os chamados cafés exóticos, que têm despertado a atenção de consumidores dentro e fora do Brasil. A prova disso foi a conquista de Gabriel Nunes, de 31 anos, cafeicultor em Patrocínio (MG), no Cerrado Mineiro. Em 2017, ele bateu o recorde mundial do leilão do concurso Cup of Excellence, com um bourbon amarelo que atingiu 92,33 pontos, pela metodologia de avaliação sensorial da Associação de Cafés Especiais (SCA), e foi vendido por R$ 55 mil a saca.

Além da escolha da variedade bourbon, conhecida pela bebida de doçura acentuada, havia um segredo por trás do lote vencedor, que tinha notas de rapadura e frutas vermelhas. Foi a dupla fermentação que realçou esses sabores e agradou japoneses e australianos. "Fizemos uma fermentação anaeróbica (sem oxigênio). O café natural (com casca) ficou fermentando por 48 horas. Depois, descascamos e deixamos fermentar por mais 24 horas”, conta Nunes, que se interessou pelo processo depois de uma viagem para a Colômbia, onde as condições climáticas exigem que o café seja despolpado em tanques de fermentação.

O feito da família Nunes deu projeção internacional ao Cerrado Mineiro, região que, embora tenha diversos perfis sensoriais, até então era mais atrelada aos cafés com notas de chocolate e caramelo.

A conquista de Gabriel Nunes despertou o interesse de outros jovens, como Alan Michel Batista, de 23 anos, que assumiu a propriedade da família depois da morte do pai, em 2016. Inquieto e antenado com as tendências do mercado consumidor, ele começou a fermentar cafés em 2018. “Identifiquei que era o caminho para intensificar alguns atributos, como acidez, ressaltar sabores e trazer mais complexidade ao café”, diz Batista, que foi em busca de conhecimento para iniciar os experimentos.

A aposta deu certo. No ano passado, ele ficou em primeiro lugar no concurso de qualidade da Associação de Pequenos Produtores do Cerrado, com um lote de café fermentado, da variedade paraíso, que apresentou notas de limão-siciliano, melaço, rapadura e acidez cítrica.

“Coloquei o café em sacos (apropriados), coloquei água, fechei, levei para um lugar fresco na mata e deixei fermentar por 72 horas”, conta. “Depois, o café ficou por 22 dias secando em terreiro suspenso”, completa.

A fermentação é uma técnica milenar, que vem sendo aprimorada ao longo dos séculos. No café, podese dizer que é algo corriqueiro. “Todo grão passa por uma fermentação espontânea na secagem lenta ao sol, mas as pesquisas geraram tecnologia para a fermentação anaeróbica (sem oxigênio) induzida por atividade microbiana (microrganismos como leveduras, bactérias e fungos)”, explica a microbiologista Rosane Freitas Schwan, professora da Universidade de Lavras (UFLA), que é referência mundial em fermentação de cafés.

Ao longo dos anos, a equipe de Rosane selecionou e isolou cerca de 3 mil microrganismos e vem multiplicando os mais promissores, que se tornarão culturas iniciadoras: leveduras que, quando inoculadas no café, podem acrescentar de 4 a 5 pontos na nota da bebida pelo processo de fermentação anaeróbica. Em outras palavras, a pesquisa multiplica os microrganismos e desenvolve protocolos de fermentação controlada, com a quantidade certa de leveduras e condições apropriadas para intensificar os sabores e aromas já existentes no fruto e dar ao produtor consistência na oferta de cafés de qualidade.

Essa tecnologia tem chegado ao cafeicultor por meio do projeto Nucoffee Artisans, um convênio firmado entre a UFLA e a Syngenta. A primeira multiplica as leveduras, enquanto a segunda financia as pesquisas e faz a validação em campo. No primeiro ano, a Syngenta convidou 400 cafeicultores, que receberam a levedura, o treinamento da UFLA e foram acompanhados até a avaliação final. Nos anos seguintes, quem quis ficar no projeto, que também dispõe de uma plataforma para a comercialização dos grãos especiais, teve de arcar com os custos da multiplicação dos microrganismos.

“O custo do kit da levedura está em torno de R$ 2.400 e rende 20 sacas”, diz a engenheira agrônoma Maria Gabriela Baracat Sanchez, proprietária da Fazenda Dois Irmãos, em Coromandel (MG), com 300 hectares de cafezais. “O custo compensa, porque temos preços diferenciados nesses cafés”, acrescenta a cafeicultora, que participa do Nucoffee Artisans há três anos.

No ano passado, o empenho de Gabriela rendeu frutos. Ela ficou em primeiro lugar no concurso Coffee of the Year, na categoria café arábica com fermentação induzida. O lote vencedor foi da varieda

de paraíso e veio de um talhão em que a agricultora monitorava dia a dia o brix (maturação do café) na lavoura. “O lado do cafezal que pegava o sol da manhã estava muito mais maduro, com um brix entre 37 e 39. Então, fizemos a colheita seletiva ali”, diz. O café foi para a bomba (biorreator de polipropileno com válvula para liberação de gás carbônico) e ficou fermentando com a levedura por 72 horas.

Na sequência, passou 28 dias secando no terreiro suspenso e descansou por um mês. O resultado foi um café de 89,75 pontos, com um sensorial de groselha, trufa de chocolate e flores. Mas o caminho para conquistar tal feito é trabalhoso, exige monitoramento constante da temperatura, do pH e uma assepsia extrema, uma vez que ambientes sujos contêm microrganismos maléficos que produzem substâncias tóxicas.

“Coffee makers são os profissionais responsáveis por elaborar o perfil sensorial do café, a exemplo dos wine makers no mundo do vinho”

JULIANO TARABAL, superintendente da Federação dos Cafeicultores do Cerrado Mineiro

Uma das características que a fermentação pode incutir nos cafés é um sensorial de bebidas alcoólicas, como o vinho. Mas esse atributo não agradava Eduardo Pinheiro Campos, proprietário da Fazenda Dona Nenem, que tem 670 hectares de cafezais a 1.150 metros de altitude, no limite de Presidente Olegário (MG) com Patos de Minas (MG).

Em 2015, a propriedade recebeu a visita do engenheiro agrônomo Flávio Borém, pesquisador da UFLA e ícone em estudos sobre a qualidade de café no Brasil. “Disse ao Borém que era muito ligado em qualidade e queria fazer coisas diferentes”, relembra Campos. “Ele me propôs fazer uma fermentação controlada. Disse que seria um desafio, por ser algo novo, que não existia no Brasil.” Daquela conversa surgiu o projeto dos seis biorreatores de inox de 360 litros cada (correspondentes a uma saca de café cereja descascado) para começar os experimentos. O empresário investiu R$ 350 mil na compra dos tanques e local para abrigá-los. Naquele mesmo ano, a equipe de Rosane, parceira de Borém na UFLA, começou a acompanhar os trabalhos. “Os estudantes praticamente dormiam na casinha dos reatores. Foram feitas dezenas de amostras de fermentação e hoje ficamos com oito receitas”, diz Campos.

O crivo seguiu alguns parâmetros. Um deles foi a evolução. O grão entra nos tanques com uma determinada pontuação de qualidade e precisa evoluir: sair com notas sensoriais mais destacadas e com uma pontuação melhor do que tinha quando entrou. O segundo critério foi a repetibilidade: as “receitas” precisam apresentar o mesmo resultado de xícara safra após safra, característica fundamental para fidelizar a clientela.

O trabalho para chegar a um café fermentado excepcional começa na lavoura, com a figura de um novo profissional, chamado coffee maker. “Eles são os profissionais responsáveis por elaborar o perfil sensorial do café, a exemplo dos wine makers no mundo do vinho”, diz Juliano Tarabal, superintendente da Federação dos Cafeicultores do Cerrado Mineiro.

Na Dona Nenem, quem desempenha esse papel é o Q-Grader, avaliador de qualidade, Renato Luiz de Souza, o Renatinho. Ele acompanha todos os processos, desde a lavoura até a degustação da bebida. Há oito anos, Renatinho faz o mapeamento de qualidade da propriedade: divide os cafezais em talhões, de acordo com cultivar, pontuação do café e estágio de maturação.

Antes da colheita anual, é feita uma amostragem, uma minicolheita seletiva dos cafés cereja para avaliar a maturação e ver em qual processamento – natural, cereja descascado (CD) – o grão expressa mais seus atributos. “Só vão para os reatores os grãos de setores com uma boa sanidade de planta, maturação avançada e pontuação acima de 84”, diz o Q-Grader.

A escolha da receita de fermentação é feita com base nos resultados dos testes e nas características que o coffee maker quer ressaltar na bebida. O grão cereja é co

lhido, lavado e segue para o reator. A receita mais usada na fazenda é uma fermentação semiaeróbica, que, inclusive, deu o segundo lugar a Campos na edição 2020 do prêmio de qualidade do café da região do Cerrado Mineiro, na categoria cereja descascado, com um bourbon amarelo que atingiu 88 pontos.

Neste caso, o grão tinha 86 pontos quando foi para o tanque de inox, previamente higienizado. Duas horas depois, completou-se o recipiente com água. Decorridas 12 horas, começou o revolvimento de 50%, porcentagem que sinaliza a velocidade. “Não pode ser muito rápido, senão a polpa do café se desgruda do pergaminho”, diz Renatinho. Após 48 horas, o café é descarregado, passa por uma pré-secagem em terreiro suspenso e termina no terreiro convencional na modalidade vulcão, que permite uma secagem mais lenta, ideal para acentuar a qualidade. A propriedade opta por fermentações mais brandas, de menos horas, que acentuam notas sensoriais de frutas já presentes no grão.

A escolha é do proprietário, que não aprecia as fermentações que deixam o café com notas alcoólicas. “Digo que o meu café é frutado, não é fermentado”, diz o cafeicultor. No entanto, quando o cliente pede um café com o sensorial de vinho, Renatinho sabe que receita usar. “É só fazer uma fermentação anaeróbica, colocar o café sem água até o limite do reator, vedar com grain pro (plástico que impede a passagem de oxigênio), tampar e deixar por 72 horas”, explica.

No entanto, das 30 mil sacas produzidas anualmente pela Fazenda Dona Nenem, apenas um montante entre 200 e 500 sacas são de fermentados. Mas a repetibilidade alcançada nesses anos convenceu Eduardo Campos a ampliar o volume. “Vou investir R$ 2 milhões em um novo reator, com capacidade para 50 sacas beneficiadas”, diz o fazendeiro. A decisão está alicerçada na demanda por esses grãos, sobretudo do Japão, e no ágio de 50% sobre o valor do café commodity.

Mas de nada adianta o minucioso trabalho desenvolvido pelos cafeicultores e coffee makers se esses cafés especialíssimos (acima de 84 pontos) não tiverem um mercado que remunere bem por todo esse empenho. E há outro agravante: esses grãos fermentados, de alta qualidade – assim como os melhores azeites, os extravirgens –, precisam ser consumidos rapidamente, porque, quanto mais o tempo passa, mais eles perdem os atributos sensoriais.

"Os estudantes praticamente dormiam na casinha dos reatores. Foram feitas dezenas de amostras de fermentação e hoje ficamos com oito receitas"

Uma das estratégias adotadas por cooperativas e associações é a realização de concursos de qualidade que dão visibilidade para esses cafés e atraem compradores (cafeterias, microtorrefações e indústrias). A região do Cerrado Mineiro, por exemplo, está na nona edição de seu concurso de qualidade e este ano incluirá uma nova categoria, a de cafés fermentados.

E a Expocaccer, uma das cooperativas que integram a Federação dos Cafeicultores do Cerrado Mineiro, investiu R$ 2,5 milhões numa unidade de armazenamento exclusiva para grãos especiais. “Aqui temos capacidade para beneficiar nanolotes de cinco sacas”, diz Sandra Moraes, responsável por esse departamento. “E todo lote exportado leva o código QR da região, com toda a rastreabilidade daquele café e a identificação do produtor”, completa.

Além disso, a Expocaccer trabalha no desenvolvimento de mercados. No caso de Gabriel Nunes, ele exporta para diversos países via cooperativa e também vende seus grãos no Brasil para cafeterias e para a Coffee++, uma loja virtual de cafés com mais de 84 pontos, que é o novo projeto de Leonardo Montesanto Tavares, filho de Ricardo Tavares, um dos maiores exportadores de café do Brasil.

EDUARDO PINHEIRO CAMPOS, proprietário da Fazenda Dona Nenem

AGRICULTURA I INOVAÇÃO

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