Revista Globo Rural

PATRÍCIA MOTA GUEDES,

AS TEIAS DE ARANHA QUE COBREM os livros na biblioteca da Escola de Ensino Fundamental Zilcar de Souza Holanda, no distrito de Cipó dos Anjos, em Quixadá (CE), refletem como a pandemia relegou ao abandono os clássicos de Jorge Amado, Ariano Suassuna e da escritora cearense Raquel de Queirós, a primeira mulher a entrar para a Academia Brasileira de Letras.

Esses escritores são a paixão da estudante Suyanni Nunes, de 17 anos, que cursa o segundo colegial e se prepara para prestar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). “Quero fazer a prova já este ano para conhecer, ver como é, e aí no ano que vem eu faço de novo mais preparada”, diz ela, que, mesmo com as dificuldades, não pretende desistir do seu objetivo de se formar em gastronomia e abrir um restaurante em Quixadá.

Longe da escola desde o início da pandemia, ela confessa que, às vezes, tem vontade de desistir, pois a conexão da internet cai, a aula trava e não dá para acompanhar o conteúdo. As dúvidas vão se acumulando, porque é difícil fazer perguntas sem uma conexão de qualidade. “Toda hora caindo e travando, aí dá até preguiça de perguntar alguma coisa”, reclama Suyanni, ao revelar que alguns colegas largaram os estudos e não pretendem voltar às aulas presenciais.

O caminho que leva até a escola é uma estrada esburacada, com chão de terra batida vermelha e calor de mais de 30 °C na sombra. O ônibus escolar passa por diversas comunidades rurais, desde as 5 horas da manhã, recolhendo a criançada. São 391 estudantes morando nas redondezas. Edilene Alves de Souza, de 34 anos, conta que todos os dias os filhos, Vinícius, Venâncio e Pedro Vitor, enfrentavam 10 quilômetros de poeira e cansaço

Suyanni Nunes quer fazer faculdade para abrir um restaurante

em Quixadá (CE)

para estudar. Agora, com a escola fechada por causa da pandemia de Covid-19, a oscilação ou ausência do sinal da internet e a casa mal iluminada resumem a frustração da mãe ao ver os estudos dos filhos atrasados.

“Por mais difícil que seja, eles se interessam. Logo pela manhã, eles já acordam e pedem para fazer a tarefa”, conta Edilene. No caso do mais velho, que está no 6o ano, a situação é ainda mais delicada. Vinícius, de 12 anos, é autista e hiperativo, precisa de atenção individualizada e, ao mesmo tempo, inclusiva. Com as aulas presenciais, isso era possível. Na pandemia, ele ficou desamparado. Ela também se preocupa quando o assunto é a volta às aulas, pois não sabe quando a vacina contra a Covid-19 estará disponível para a faixa etária do menino.

Milho, feijão, poucas frutas. A escassez de alimento no Semiárido também afeta o aprendizado. Antes da pandemia, Edilene e as crianças tinham a merenda, com mingau, bolacha com suco e leite. Após o fechamento, os recursos foram direcionados às cestas básicas, que têm arroz, feijão, farinha, ovo, linguiça e alguns outros itens.

A cesta básica só pode ser entregue à família se a criança estiver matriculada na escola. A diretora do Distrito Educacional, Maria Neuda do Nascimento Carneiro, afirma que essa é uma forma de estimular a frequência às aulas, mas isso nem sempre se concretiza. “Esse modelo de ensino vai ter um déficit a longo prazo”, afirma.

O professor Evaneuton dos Santos, coordenadorgeral do Distrito Educacional Cipó dos Anjos, observa que o propósito do ensino não é apenas saber ler e fazer contas – o que é extremamente necessário –, mas também formar criticidade e discernimento para a construção de uma sociedade melhor. “À distância, isso tem ficado comprometido.”

Evaneuton acredita que, dentro da cultura educacional de hoje, o ensino remoto não vai atingir nem os 30% da meta de ensino (que é de 60%). “É humanamente impossível irmos presencialmente à casa de cada aluno. Com a pandemia mudando a dinâmica do estudar, a família se fez ainda mais importante”, pontua o professor.

São mais de 56 mil escolas rurais espalhadas pelo Brasil, segundo o Censo de 2018. Ana Paula Brandão, diretora de políticas e programas da ONG ActionAid, que atua em Quixadá por meio da organização parceira Esplar – Centro de Pesquisa e Assessoria, afirma que os problemas acontecem há décadas.

“Historicamente, são graves os problemas e lacunas relacionados à educação no campo, que já vinha sofrendo bastante. Todo esse contexto se agrava na pandemia. Sabemos do imenso desafio que teremos para recuperar esses dois anos, que impactaram profundamente a educação no país”, observa Ana Paula.

As histórias que a ouviu em Cipó dos Anjos são um pequeno retrato da educação em zonas rurais do país. Mais da metade dos estudantes que frequentam escolas públicas rurais tem vontade de abandonar os estudos. Não estão evoluindo no aprendizado, não mostram interesse pelas aulas, nem estão motivados para continuar indo à escola – embora tenham acesso a atividades remotas nesse período de pandemia. Entre os estudantes das escolas públicas em área urbana, 39% demonstram intenção de parar com os estudos, número também alto, mas bem inferior a seus colegas do campo.

Os dados sobre o comportamento dos estudantes após o fechamento das escolas são de uma pesquisa encomendada pelo Itaú Social, pela Fundação Lemann e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). A sondagem, quantitativa, foi realizada pelo Instituto Datafolha entre os

Acima, Edilene com os filhos, Vinicius, Pedro Vitor e Venâncio; abaixo, as alunas do curso de gestão do Senar

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voluptatetur arum ant.

O menino Venâncio acompanha a tarefa escolar pelo smartphone

dias 22 de abril e 21 de maio de 2021, por telefone, entrevistando os responsáveis por crianças e adolescentes com idades entre 6 e 18 anos da rede pública, em todas as regiões do país.

Nas escolas públicas em geral, em maio do ano passado, na chegada do coronavírus, os desmotivados eram apenas 26% – e agora são 40%. Esse salto de 14 pontos percentuais no desânimo dos alunos reflete os danos provocados pelas restrições impostas pela Covid-19.

"A lacuna entre o campo e a cidade sempre foi profunda. O que a pandemia fez foi aprofundar as desigualdades"

gerente de pesquisa e desenvolvimento do Itaú Social

No campo, a educação sempre foi mais precária, lembra Marilene Santos, que é professora doutora do Departamento de Educação da Universidade Federal de Sergipe. “É nas escolas mais pobres, esquecidas e precarizadas da área rural onde está a maior parcela dos alunos desmotivados”, diz. Especialista em educação rural, ela conhece as dificuldades do ensino, sobretudo nas áreas mais pobres do Norte e Nordeste. “Tudo vai desmotivando o aluno, ele passa a achar que naquela escola não vai encontrar alternativa para sua vida. E vai embora.”

Na avaliação da professora Claudia Costin, diretora do Centro de Políticas Educacionais da FGV (Fundação Getulio Vargas), a pandemia e o consequente fechamento de escolas vieram jogar luz sobre as desigualdades educacionais preexistentes. “Uma delas é a diferença entre escolas públicas rurais e escolas públicas urbanas, assim como entre escolas públicas e particulares”, diz.

Patrícia Mota Guedes, gerente de pesquisa e desenvolvimento do Itaú Social, lembra que a lacuna entre o campo e a cidade sempre foi profunda. “O que a pandemia fez foi aprofundar as desigualdades que já existiam.” A maioria dos responsáveis dos dois grupos de alunos (das escolas rurais e urbanas) tem a percepção de que o aprendizado piorou com a pandemia, afirma Patrícia. Segundo a pesquisa, 86% dos pais e responsáveis consideram que o desempenho escolar dos seus filhos antes da pandemia era ótimo ou bom e, agora, esse índice caiu para 59% – uma diferença de 27 pontos percentuais.

A conectividade é certamente um fator que deixa a escola rural para trás. Mas não é só a velocidade de conexão que diferencia a possibilidade e a qualidade do aprendizado à distância. O nível de renda e o engajamento da família contam muito. Em 84% das casas, o celular é o equipamento mais usado pelos estudantes para acompanhar as lições e tarefas on-line. “Mas cerca de 40% desses alunos têm de dividir o aparelho com outros membros da casa, pois é o instrumento de trabalho da família”, diz Patrícia. Para se ter uma ideia, o acesso à internet de banda larga é de 61% no Brasil, mas, na Região Norte, o índice é de 45%.

A pesquisa mostrou que 96% dos estudantes das escolas públicas no campo e na cidade receberam algum tipo de atividade escolar neste ano. Alunos da cidade recebem com mais frequência orientações pelo WhatsApp que seus colegas rurais: são 81% contra 64%. Em compensação, e por motivos compreensíveis, os que estudam no campo recebem mais material impresso que seus colegas da cidade: são 76% contra 65%.

A pesquisa conclui que estudantes do meio urbano se valem mais dos meios tecnológicos, por equipamentos, que aqueles que estudam no campo. Por exemplo, eles têm mais acesso a plataformas educacionais (são 62% contra 48%), assistem a mais videoaulas gravadas (50% a 32%) e a mais videoaulas ao vivo (são 50% contra 36%).

A pesquisa chama a atenção para o que classifica de estudantes em risco. São aqueles alunos que, mesmo rece

Residências em área rural no distrito de Cipó dos Anjos, em Quixadá (CE)

bendo atividades durante o fechamento das escolas, não estão evoluindo nos estudos. Não estão motivados e manifestaram possibilidade de desistir da escola. No conjunto dos estudantes de escola pública, eles eram 26% no início da pandemia e chegaram a 40% na pesquisa atual.

A educação no país vive também um processo de nucleação que atinge, sobretudo, as áreas rurais e os municípios de grandes extensões. Trata-se do fechamento das escolas menores, localizadas em fazendas ou vilarejos e que recebem poucos alunos. No lugar, as prefeituras oferecem transporte escolar para levar os alunos para as escolas que restaram em núcleos maiores ou nas sedes do município.

O fechamento de escolas rurais nos últimos 21 anos chegou a 80 mil, de acordo com levantamento atualizado com base nos dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o que mostra que quase 4 mil escolas rurais foram fechadas por ano. De acordo com o Censo de 2018, o Brasil possuía 56.954 escolas rurais – eram 103.328 em 2003.

Nestes tempos de pandemia, o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), mantido pela Confederação Nacional da Agricultura (CNA), viu a procura por aprendizado do morador do campo disparar. O Senar mantém cursos profissionalizantes e à distância, que são gratuitos.

O aumento de matrículas nos cursos no ano de 2020 (início da pandemia) foi de quase 50% (47,5%) se comparado ao ano de 2019. E quando é observado o período dos cinco primeiros meses de 2019 (sem pandemia) com os cinco primeiros meses de 2021 (com pandemia), o incremento sobe para 81,46%.

“A pandemia trouxe uma situação inusitada, mudou a rotina das pessoas, mas o produtor precisa do conhecimento, e há a necessidade de se buscar alternativas”, diz a diretora de educação profissional e promoção social do Senar, Janete Almeida. Essa busca de alternativas a que ela se refere leva em conta o principal gargalo para a informação circular no campo: o acesso à internet. Ora, se mais de 70% das propriedades estão privadas de conectividade, o desafio de ensinar à distância se torna algo gigantesco e desafiador.

Edilane ajuda a filha Sarah Lorrany na tarefa escolar

Amenina tímida de vestido amarelo fica com as bochechas coradas quando vê pessoas desconhecidas passarem no portão em direção à sua casa. É Sarah Lorrany, de 7 anos, filha de Edilane da Silva Alves, que também se mostra curiosa para saber qual era a finalidade da visita inesperada.

Quando fica sabendo que se trata de uma reportagem sobre ensino no campo, ela se interessa e, durante a conversa, vai revelando seu amor pelos estudos. Diz que não só incentiva a filha a estudar, como sonha um dia se tornar professora, mas confessa que já desistiu. Não por falta de vontade, mas por não ter condições.

Ela conta que a faculdade fica longe e, nestes tempos de pandemia, a falta de conectividade aumenta ainda mais essa distância. É um abismo que se abre e Edilane, infelizmente, não consegue mais ter esperança. Com apenas 24 anos, deixou de acreditar que continuar cursando a faculdade de pedagogia é possível. Fala sobre o sonho interrompido com lágrimas nos olhos.

Edilane conseguiu cursar o primeiro ano de pedagogia numa faculdade particular em Quixadá, antes da pandemia. Estudava em casa pelo celular e nos livros. Ia até o campus da faculdade aos domingos para frequentar a biblioteca. As provas eram feitas no sábado, presencialmente. “Juntavam duas, três amigas e pagávamos a um o moço para levar a gente lá. Aí ficava o dia todo, para valer a pena”, lembra.

Na comunidade, não tem ônibus escolar gratuito para adultos, só para os alunos dos ensinos fundamental e médio. Quem mora na zona rural, a mais de 40 quilômetros de Quixadá, é obrigado a pagar do próprio bolso para ir para a escola. E, assim, ela tinha dias desgastantes por causa da estrada em más condições e do calor excessivo.

Ela conta que, ao engravidar, teve de interromper a graduação. “Era muita gastura, acordava cedo demais, levava muito tempo para chegar, aí ficávamos o dia todo para aproveitar. Quando engravidei, por conta dessa situação toda (provocada pela pandemia), fiquei com complicações e tive de parar.”

Edilane afirma que se sente invisível e não quer a mesma vida para as filhas. Chora por abandonar o sonho de ser professora, mas fala confiante: “Estou fazendo todo o esforço, além das tarefas de casa, para ensinar o abecê a Sarah, que já está escrevendo o próprio nome. Do alfabeto, ela conhece algumas letras, mas vai pelo esforço da gente”, ela conta, enquanto organiza o caderno e o estojo vermelho da Minnie com canetas e lápis de cor.

Mãe e filha são dois passarinhos querendo voar. Pegam o material com zelo e carinho, como se fosse a coisa mais valiosa do mundo. A lição é de matemática e Sarah conta os dígitos 1, 2 e 3 desenhados na página e, então, vai ligando os pontos até o número 3. É tão delicado ver ali a vida se descobrindo. E a mãe gosta de ajudar: é nítido que sua vocação é ser professora.

Obatom ao lado do notebook é um detalhe que revela quanto a Tia Leila se preocupa com a beleza para se apresentar aos alunos nas aulas on-line. Apesar da vaidade, ela tem pavor de estar na frente da câmera.

Vasos feitos com embalagens de amaciante, pendurados na parede, enfeitam o ambiente, como fundo do home office de Maria Leiliane do Nascimento. É um escritório improvisado, montado na parte de fora da casa.

O notebook e o smartphone são novos, comprados com o suor da própria família no ano passado, para que as atividades on-line sejam um pouco melhores. A internet também sai do próprio bolso. E, mesmo com uma conectividade precária, há um receio de não estar disponível quando o aluno precisar.

“O bichinho vai achar que não quero dar retorno, mas é que o sinal oscila muito”, diz, preocupada. Tia Leila nasceu em Quixadá, estudou na mesma escola onde leciona atualmente. Fez faculdade no mesmo município e descobriu naquela terra a vocação para crianças.

Mas, por mais dedicada que seja a Tia Leila, como seus alunos carinhosamente a chamam, a mulher admite que está sobrecarregada. “Eles me perguntam muito: 'Tia, quando vamos voltar à nossa sala?'. E eu não tenho coragem de dizer que não sei”, conta.

Dentro de casa, ela sente como o distanciamento está sendo difícil para as crianças. Questionada se a filha está indo bem nos estudos por ter uma professora exclusiva em casa, Leiliane chora, faz uma pausa e diz que a filha Fernanda lhe mandou uma mensagem pelo WhatsApp pedindo ajuda para fazer a lição. “Como mãe, me vejo muito falha”, lamenta.

Tia Leila teve de explicar para a filha que estava ocupada no trabalho que lhes garante o sustento, ajudando outras crianças. Chora mais uma vez ao falar sobre o atraso na alfabetização do filho de quatro anos. “Meu filho tem muita dificuldade, inclusive no contato com os colegas, e a Fernanda nessa idade já aprendia muita coisa. A escola faz uma falta imensa, não temos como mensurar”, diz a profissional, que é formada em letras e pedagogia.

Dividida entre as obrigações de professora e as tarefas de casa, ela conta que quase chegou a quebrar o celular, sufocada por tantos avisos sonoros das mensagens do aplicativo. Percebeu que estava à beira da depressão.

Questionada sobre uma possível aprovação automática dos alunos, por causa da pendemia, Tia Leila fica pensativa. Como mãe e professora, fico entre a cruz e a espada. “É muito complicado. Se eu fosse contra a reprovação, estaria sendo contraditória com tudo que aprendi, mas a criança não tem culpa. Mantê-la no mesmo ano pode ser mais um desestímulo. Não sei se alguém tem resposta para isso.”

Ela enxuga as lágrimas, retoca o batom e diz que, de um jeito ou de outro, vale a pena seguir adiante.

Maria Leiliane investiu seu próprio dinheiro na compra de notebook e smartphone para ministrar as aulas on-line

"Eles me perguntam muito: 'Tia, quando vamos voltar à nossa sala?'. E eu não tenho coragem de dizer que não sei"

MARIA LEILIANE,

EDUCAÇÃO I SUPERMULHER

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2021-09-02T07:00:00.0000000Z

2021-09-02T07:00:00.0000000Z

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