Revista Globo Rural

AGRICULTURA FAMILIAR

Sem apoio, pequenos produtores brasileiros resistem na atividade

por CLEYTON VILARINO fotos FERNANDO MARTINHO e MARCELO CURIA

ilustração DAVI AUGUSTO

QUANDO DECIDIU DAR INÍCIO À PRODUÇÃO de hortaliças hidropônicas, o agricultor Weviton Santos Feitosa, de 50 anos, recorreu à mesma estratégia que usou para estruturar a sua atividade há dez anos. Foi ao banco na esperança de conseguir R$ 200 mil do Pronaf Investimento, linha cujos prazos são de até dez anos, com carência de três para iniciar o pagamento. “O cara me perguntou quanto eu precisava e eu falei: R$ 200 mil. Aí ele disse que não, que isso não existia e que financiamentos nesse valor eram só para gado, banana, eucalipto, essas coisas. Que para hortaliças o máximo que tinha disponível era R$ 20 mil. O que vou comprar com R$ 20 mil? Ele não tem culpa, mas eu disse: ‘Venha cá, então eu sou condenado a plantar HF?'", conta o agricultor, que, graças a recursos próprios, deu início ao seu projeto, porém com metade da capacidade planejada.

A dificuldade de expandir o negócio ou até mesmo manter-se na atividade agropecuária é uma realidade para muitos agricultores familiares. Na produção de feijão, na qual 80% dos estabelecimentos são da agricultura familiar, a redução do plantio em pequenas propriedades ilustra bem esse processo. Item básico na mesa dos brasileiros, a leguminosa é pouco exportada, tendo seu consumo destinado quase que exclusivamente ao mercado interno e tem perdido cada vez mais espaço no campo para grãos exportáveis como soja, milho e algodão.

“A participação da agricultura familiar no volume total de feijão produzido vem diminuindo. Já em 2017, no último Censo Agropecuário realizado, foi percebido que os produtores com até 50 hectares tinham reduzido ao redor de 60% a participação da quantidade de produtores. Então a produção de feijão é uma atividade que está migrando para os médios e grandes produtores, mas não na quantidade que precisaria”, explica o presidente do Instituto Brasileiro do Feijão, Pulses e Colheitas Especiais (Ibrafe), Marcelo Eduardo Lüders.

Apesar da defasagem de cinco anos, o último mapeamento socioeconômico rural brasileiro citado por Lüders apontava uma tendência que, segundo pesquisadores, tem se acentuado no país nos últimos anos: a redução no número de estabelecimentos da agricultura familiar. Segundo o dado mais recente, do Censo do IBGE, a queda foi de 9,5% entre 2006 e 2017, sendo este o único segmento agropecuário a perder mão de obra no período, com 2,2 milhões de trabalhadores a menos.

A avaliação da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) é de que os dados refletem tanto o êxodo rural dessa faixa da população do campo quanto o aumento da renda e da produção – que acabam retirando os produtores mais prósperos da categoria de agricultura familiar. Hoje, é considerado agricultor familiar quem tem receita anual de até R$ 415 mil.

“A lei estabelece um limite, um teto de renda que esses agricultores precisam estar enquadrados, e pode ser que aqueles que viraram empreendedores saíram desse limite do teto. O outro ponto é que, efetivamente, às vezes as pessoas vão envelhecendo e os jovens não têm atração ou interesse de ficar na zona rural”, afirma a assessora técnica da CNA Marina Zimmermann.

A leitura da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), por sua vez, é mais crítica. “O que acontece é que os agricultores se veem pressionados a vender seus lotes porque não tem políticas públicas para eles acessarem e se manterem na terra. Isso é muito de uma observação, não temos como dizer que isso efetivamente aconteceu, mas temos observado o que os dados nos mostram”, afirma a secretária de política agrícola da Contag, Vânia Marques Pinto.

“Os agricultores se veem pressionados a vender seus lotes porque não tem políticas públicas para eles acessarem”

VÂNIA MARQUES PINTO, secretária de política agrícola da Contag

“Houve várias mudanças nesses últimos anos, principalmente depois de 2016, com o fim do Ministério do Desenvolvimento Agrário, no qual a agricultura familiar estava lotada. Essa foi a maior mudança nesses últimos anos, porque trouxe junto com ela a redução de recursos para as principais políticas para a agricultura familiar”, critica Vânia, ao mencionar especialmente o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

De acordo com levantamento realizado pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), as dotações finais do orçamento da União para Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar caíram de R$ 1,3 bilhão, em 2012, para R$ 135 milhões, em 2021. Para o exercício de 2023, o valor previsto pelo governo federal no Projeto de Lei Orçamentária Anual enviado ao Congresso é ainda menor: R$ 2,7 milhões.

“O orçamento que está previsto para o ano que vem é para extinguir o PAA praticamente, não dá para fazer nada”, critica o economista e ex-secretário nacional de Segurança Alimentar e Nutricional Arnoldo de Campos. No caso do PNAE, o pesquisador destaca o recente veto ao reajuste dos valores pagos pelo programa, há cinco anos sem revisão. Desde 2009, a legislação prevê um percentual mínimo de 30% de aquisição da agricultura familiar para merenda escolar, com impacto direto na geração de renda no campo – sobretudo em tempos de crise econômica e sanitária.

“É uma questão sistêmica, um desfinanciamento de políticas públicas que vulnerabiliza a população do campo”, observa a assessora de políticas públicas da Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas (FIAN-Brasil), Gabriele Carvalho, ao relacionar os cortes e mudanças realizadas nesses programas ao aumento da fome no campo e na cidade.

De acordo com o 2o Inquérito Nacional Sobre a Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil, divulgado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), a insegurança alimentar na sua forma mais grave atingiu 18,6% dos domicílios rurais e 15% dos urbanos, chegando a 21,8% nos lares da agricultura familiar.

No município com o segundo maior volume de compras de produtos da agricultura familiar do país, Montes Claros (MG), os efeitos dos cortes no orçamento se somam a problemas antigos, como a dificuldade de acesso a crédito e assistência técnica. “O PAA e o PNAE hoje a gente participa, mas, para se ter uma ideia, para uma associação com oitenta e pouco produtores, eles mandam pedidos de 10 quilos de cebola para dividir para todos”, reclama o agricultor Weviton Santos Feitosa, de 50 anos.

Localizado às margens da BR-135 e a 20 quilômetros da cidade, ele conta com uma posição logística privilegiada, mas não o suficiente para atender aos pedidos de volumes cada vez menores. No celular, Baiano, como é chamado pelos mais amigos, mostra áudios de colegas insatisfeitos com as encomendas dos compradores. “Cebola: um quilo. Quatro quilos de couve, sete de pimentão. Como é que um cara que nem ele vai entregar um pedido de sete quilos de pimentão?!”, reclama o também agricultor Renato Marcelo Dias Rocha, de 40 anos, ao comentar a situação do vizinho Weviton.

Junto com seus irmãos, Marcelo é considerado o maior produtor de chuchu do norte de Minas Gerais, foi dire

“O PAA pagava, em média, R$ 5 mil por ano para cada produtor, dinheiro que a gente usava para pagar um custeio”

WEVITON SANTOS, agricultor de Montes Claros (MG)

“O que era produzido para

o PAA a gente acabou parando de produzir, porque

não tem outro comércio”

ALEXANDRE SILVEIRA RAMOS, produtor de Santo Antônio da Patrulha (RS)

tor de políticas agrícolas do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Montes Claros e lembra como esses programas foram fundamentais para o desenvolvimento agrícola da região.

“O recurso é vergonhoso, o preço piorou, mas, mesmo assim, ainda ajuda um grupo de pessoas a trabalhar. O PAA pagava, em média, R$ 5 mil por ano para cada produtor, dinheiro que a gente usava para pagar um custeio, uma parcela do Pronaf. Então aquele programa social cruzava com outros e, quando quebrou o elo de um, pronto: quebrou as nossas pernas”, completa o agricultor. De 174 comunidades rurais cadastradas no sindicato, Marcelo conta que apenas seis conseguem fornecer para os programas de compra institucional do governo atualmente.

“Hoje o Programa de Aquisição de Alimentos é o segundo maior do país, mas era para ser o maior. Tem mais de 600 pessoas esperando para entrar, só que não tem dinheiro, não tem recursos, não tem nada. E o preço está defasadíssimo. É o que está acabando conosco”, completa o agricultor enquanto caminha pelos canteiros de verduras perdidas pela falta de comprador.

Em Santo Antônio da Patrulha, no Rio Grande do Sul, os cortes nesses dois programas reduziram à metade a renda da família de Alexandre Silveira Ramos, de 48 anos. “O PAA não era um valor estrondoso, era em tor

no de R$ 7 mil cada projeto para cada família, mas era um valor que a gente conseguia ajudar nas despesas e fazer sobrar alguma coisa”, relata o agricultor. No campo desde 2009, quando deixou a cidade em busca de maior qualidade de vida, ele conta que muitos de seus vizinhos já fizeram o movimento inverso.

“Muita gente está abandonando a produção agrícola para trabalhar no comércio, fábricas ou em outros lugares deixando a propriedade abandonada. Só usam como moradia, mas trabalham fora a semana toda porque estão cada vez mais achatados pelos preços dos insumos e pela falta de políticas públicas que beneficiem a agricultura familiar”, observa Alexandre, ao revelar que ele mesmo precisou mudar a sua produção para manter-se na atividade. No lugar das delicadas verduras e legumes entraram os ovos enquanto a fruticultura encolheu.

“O que era produzido para o PAA a gente acabou parando de produzir porque não tem outro comércio para colocar, e o que tinha de excedente de frutas muita coisa se perdia, pois não tem onde colocar. Até porque o sítio fica a 20 quilômetros do centro da cidade, então é um impacto grande o combustível para fazer o transporte de pequenas quantidades”, relata o agricultor

Na avaliação de Arnoldo de Campos, a redução da produção da agricultura familiar é um dos fatores que têm contribuído para a inflação de alimentos no Brasil, puxada também pela alta no preço dos insumos e dos custos de produção em geral. Como exemplo, o economista cita a diferença entre a inflação de alimentos frescos e industrializados. Enquanto o índice geral para alimentos e bebidas acumula alta de 11,71% em 12 meses até setembro, quando consideradas apenas frutas, esse aumento vai a 29,15%. Quando consideradas apenas hortaliças e verduras, chega a 12,19% e, no grupo tubérculos, raízes e legumes, 16,87%, sendo 127,3% só da cebola.

“O mercado de hortaliças é intensivo em mão de obra, energia, água, insumos, e tudo subiu muito mais que o preço de venda. Então a margem do produtor está apertada, não tem crédito, o problema climático se acentua e hoje esses produtores não têm assistência técnica, não fazem investimentos e estão mais sujeitos a eventos climáticos”, resume Campos. Com isso, tal qual o feijão, que em 2021/2022 atingiu sua menor área plantada desde 1976, outros produtos ligados à agricultura familiar têm visto sua área plantada diminuir nos últimos anos. Segundo o IBGE, de 2017 a 2021, a redução foi de 15% para o tomate, 5% no plantio da mandioca, 16% no do arroz e 3% na área com banana.

A situação de exclusão social vivida por parte da agricultura familiar também fica evidente nos números de crédito agrícola do país. Uma análise sobre os contratos do Pronaf realizados de 2013 a 2019 divulgada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) este ano constatou queda de 32% no número de contratações, com aumento de 47% no valor médio dos contratos realizados a cada ano.

Segundo os pesquisadores do Ipea, “esses dados podem indicar que a redução de contratos operados no âmbito do Pronaf ocorreu majoritariamente entre os agricultores de menor renda”, enquanto “o aumento do valor médio dos contratos aponta para uma maior apropriação dos recursos do Pronaf pela parcela mais capitalizada de agricultores familiares”.

O estudo destaca ainda a concentração das contratações na região sul do país, para onde foi enviado mais da metade dos recursos, e em apenas três culturas agrícolas (soja, milho e café), além da pecuária bovina. Juntas, as quatro atividades respondem por 70% do montante

“O principal problema é que a única política pública que chega à agricultura familiar é o crédito,

que é feito pelos bancos”

JOÃO LUIZ GUADAGNIN, consultor em crédito rural

contratado, segundo números do Banco Central reunidos pelo Ipea.

De acordo com o consultor em desenvolvimento e crédito rural João Luiz Guadagnin, esse cenário é reflexo do modus operandi das instituições financeiras, que privilegiam atividades e produtores de menor risco. “O principal problema é que a única política pública que chega à agricultura familiar é o crédito, que é feito pelos bancos." Ele observa que, para trabalhar com extrativistas, quilombolas, indígenas, agricultura familiar diversificada que produz para merenda escolar e feiras regionais, é preciso expertise e conhecimento sobre a realidade dos pequenos produtores. "E o que os bancos conhecem? Se especializaram em trabalhar com commodities”, aponta Guadagnin, ao mencionar como as demais dificuldades da agricultura familiar também dificultam o acesso a crédito.

“O primeiro ponto é que o agricultor familiar precisa de um projeto para apresentar ao banco e conseguir a liberação de recursos, mas um grande percentual desses agricultores não sabe ler ou não tem acesso a assistência técnica, hoje restrita a menos de 20% dos produtores. Então como é que ele vai apresentar um projeto ao banco se ele não tem assistência técnica?”, relata a secretária de política agrícola da Contag, ao criticar a falta de prioridade dada ao setor.

“O que a gente tem observado e avaliado é que a agricultura familiar não é a prioridade. A prioridade está sendo pautada para o agronegócio, para a exportação de commodities e grãos. A valorização do campo está indo nessa perspectiva. E o impacto disso a gente tem visto na mesa dos brasileiros e brasileiras, no valor que estão os alimentos”, desabafa a sindicalista.

A revista GLOBO RURAL procurou o Ministério da Agricultura para falar sobre os cortes nas políticas de aquisição de alimentos. A pasta sugeriu que a reportagem procurasse a Conab. A Companhia Nacional de Abastecimento, por sua vez, indicou o Ministério da Cidadania e o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, que não retornaram os contatos da equipe.

SUMÁRIO

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2022-11-01T07:00:00.0000000Z

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